sexta-feira, 16 de maio de 2014

Reportagem com Eva Furnari

Impulso criador
Entrevista com Eva Furnari
POR GABRIELA ROMEU
É pescando um pedacinho de história aqui, outro ali que a escritora Eva Furnari diz criar suas narrativas, em imagens e palavras. Autora de livros como “Bruxinha e Frederico”, “Assim Assado” e “Felpo Filva”, alguns das 64 obras que fez ao longo de uma carreira de mais de três décadas, a escritora recebeu a revista Emília numa tarde para uma deliciosa prosa sobre os caminhos (e os atalhos e as encruzilhadas) do processo de criação.
Eva Furnari mora num sobradinho pintado de rosa antigo, localizado num bairro paulistano da zona sul que bem lembra as casas pequeninas e coloridas de livros como Cacoete. É no segundo andar do sobrado onde mantém seu ateliê, de onde observa diariamente a copa de uma antiga amoreira, plantada quando os filhos eram ainda crianças.
Com alguns originais pendurados na parede, não há nenhum sinal de desorganização. Tudo é minuciosamente colocado em pastinhas (reais ou virtuais), que trazem centenas e centenas de rascunhos, testemunhos de uma criadora persistente. Ao abrir a maleta de tintas, algo soa fora de ordem, mas logo a ilustradora avisa: “Alguém mexeu aqui”, diz, com um certo incômodo no sorriso.
Se o percurso de criação segue por uma estrada tortuosa e nada racional, o mesmo trajeto é também pontuado pela rotina e pela disciplina. São elas que garantem que a artista possa se “debruçar no ato da criação”, que requer elaboração e repetição. “Algumas pessoas têm essa necessidade de criar. Não é uma escolha racional, criar faz parte da sobrevivência delas, é uma verdadeira compulsão”, diz a escritora, que estreou no universo das histórias para crianças com a personagem Bruxinha, criada para o suplemento infantil do jornal Folha de S.Paulo, a "Folhinha", nos anos 80.
Nos trechos da conversa a seguir, Eva Furnari fala mais sobre esse impulso de criação, da relação das crianças contemporâneas com o ritmo das narrativas e da matéria-prima de suas obras, entre outras questões.
Eva Furnari

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Trude e Kiki – estudos
Trude e Kiki – estudos
Trude e Kiki – estudos
Trude e Kiki – estudos
Ilustrações do processo de criação do livro “Trude e Kiki”, história em que Eva Furnari inventa duas línguas divertidas faladas por duas meninas
GR – Como uma ideia vira uma história?
EF – O resultado não mostra o processo. Quando você começa a ter ideias, elas estão absolutamente quadradas. Aí você vai arredondando, elaborando até chegar a um bom resultado. Porque você cria, mas uma das coisas importantes mesmo é você perceber que, dentro das coisas que você criou, o que é bom e o que não é. Quando estamos criando, aparece todo tipo de bobagem. Por isso que eu acho que é fundamental ter disciplina no trabalho, que ajuda muito nessa necessidade de elaboração, de repetição, de fazer milhões de rascunhos.

GR – A rotina e a disciplina te permitem essa criação literária mesmo?
EF – Pra mim, sim. Na verdade, a disciplina é um resultado de escolhas. Ultimamente, por exemplo, não tenho mais ido a escolas nem faço palestra, porque realmente não dá tempo, é uma escolha. Ou eu faço os livros ou eu circulo. Com a idade, sinto que acabo até trabalhando mais lentamente ou trabalhando mais em cima de um projeto mais sofisticado, mais elaborado. Isso exige mais tempo. Então realmente não dá tempo de atender o público, o que eu acho uma pena, mas eu tive que fazer essa escolha. O que eu posso oferecer de melhor são meus livros.

GR – A criação parece ter um tempo próprio, você percebe isso assim?
EF – Ah, exatamente. É necessário a gente se afastar para ter um pouco de isenção, para olhar aquilo e retomar. O trabalho precisa ter um tempo de maturação mesmo; sua sensibilidade e sua percepção do trabalho ampliam muito, onde está melhor, onde está pior, o que é lixo, o que sobra da história o que dá pra enxugar. O ideal seria ter um tempo de maturação, mas isso corre meio na contramão da sociedade atual. Mas nem sempre dá tempo, por que você tem um prazo com a editora, que precisa lançar e tudo mais.

GR – Há autores que entram numa produção que parece acelerada...
EF – Isso não, nem consigo, estou sempre puxando o breque de mão.

GR – Nesses trinta anos, ao lançar de novo um olhar sobre suas obras, percebe alguma mudança no ritmo de se contar uma história?
EF – Sim, existe uma mudança. A informação que existe no mundo, na internet, a informação do cinema, por exemplo, cortam caminho. Então, quando você vai fazer uma descrição de algo visual, a criança já tem todo um repertório, você não precisa fazer mais aquelas descrições do século 19. Nessa literatura precisava dizer o que era uma mansão, que o tijolo tinha tal cor... Hoje, com poucas palavras, você já acessa um repertório imenso e há até um excesso de referências visuais. Outro aspecto é que a gente não sabe por que, mas o tempo está passando mais rápido, pelo menos temos essa impressão. Existe mesmo uma aceleração dada pelo desenvolvimento das mídias, é uma aceleração mental, imagino. Então a gente vira aquele come-come [do videogame], que vai devorando tudo que está na frente. Haja meditação.

GR – E pra fazer a “digestão” de tudo isso?
EF – Existem uma voracidade e uma aceleração incríveis. A digestão fica prejudicada. Se você pensar no homem mais natural, mais próximo à natureza, há algum desequilíbrio nisso. Porque você pode ter um monte de informações, mas, emocionalmente, o ser humano é o mesmo, o ser humano não mudou nem em trinta, nem em duzentos anos. Existe hoje um pouco de desequilíbrio nas relações afetivas; as crianças ficam de certa maneira um pouco descompensadas, não só as crianças, os adultos também. Elas têm informação, sabem tudo o que acontece com os pais, por exemplo, mas não têm maturidade emocional para lidar com aquilo tudo. Uma das proteções é justamente a seleção. Você tem que selecionar o que entra ou não entra na sua casa, na sua vida. A gente está com muitos lixinhos na vida, tudo entulhado.

GR – E a relação delas com as histórias, com o ritmo da narrativa, mudou?
EF – A literatura lida com as mesmas questões de cinquenta, cem anos atrás, questões que estão em Mark Twain e Charles Dickens. São as mesmas questões, só que a linguagem tem que ser diferente, tem que ser mais rápida, mais objetiva. Não é qualquer coisa que faz a criança rir ou se encantar. Mas talvez até porque eu não tenha muita formação literária, não vim da literatura, vim das artes, eu já trabalhe com esse texto mais direto, mais curto, talvez até exageradamente mais objetivo.

GR – Voltando a falar de sua obra, qual é a matéria-prima das suas criações?
EF – Acho que é um “mix”, uma parte é visual, curto muito livro de arte, exposições e tudo mais. O cinema é outra fonte de inspiração. E também a literatura. E a gente tem todo um universo interior: quem é criador tem, sei lá, um caldeirão dentro de si, é onde a  gente vai pescar. Então tem um universo interior, mas tem escritor que busca em coisas externas. Para mim, não é a realidade, é muito a imagem e a imaginação. Estou sempre no caminho do simbólico.

GR – Existe um impulso criador?
EF – É muito complicado explicar. Toda pessoa é capaz de criar, mas eu não sei te dizer por que algumas se debruçam de verdade no ato da criação. Van Gogh, por exemplo, é nítido que ele não tinha tanta habilidade, mas ele tinha uma grande paixão e mergulhou completamente na arte, de corpo e alma. Então acho que algumas pessoas acabam fazendo um mergulho nesse universo. Algumas pessoas têm essa necessidade de criar. Não é uma escolha racional: criar faz parte da sobrevivência delas, é uma compulsão, uma compulsão de criar, inventar. E aí ela pode desenvolver isso de uma forma mais organizada ou menos organizada; algumas têm mais dom, mais talento, o pote de criação delas é maior, não sei.

GR – Cheguei aqui no seu bairro e logo pensei: “Nossa, essas casinhas e ruas lembram de certa forma o mundo criado nos livros da Eva!”. É isso mesmo?
EF – Todo mundo tem um universo próprio. Tenha ele esse ímpeto criador ou não, tem um universo definido pelo corpo, pelos gostos, e isso desde  estética, casa, comida, tudo, escolhas, não é? Cada ser humano – bandido, mocinho, sei lá – tem um universo interior. Algumas pessoas se dedicam a essa compulsão que não é nem escolha e acabam manifestando esse universo interior. É assim como um estilista, um escritor, um desenhista, um artista, um músico, eles têm a incrível oportunidade de materializar esse universo.
Tenho 60 anos, percebo que levei a vida inteira, e ainda pretendo levar muitos outros anos na depuração desse universo. Gosto mais dos meus livros de uma década pra cá, pois eles são fiéis a minha natureza. Só que tive que trabalhar muito e tirar muito lixo da frente pra atingir essa pureza. Então é um universo pessoal que já existia, que nem estava claro para mim, e que fui construindo até as vezes mais fora do que na vida pessoal. A manifestação de certas modificações da minha pessoa, das minhas evoluções, aparece antes nas histórias, depois na minha vida. Surgem antes de forma simbólica, depois vou processar.

GR – Como surgem algumas de suas histórias?
EF – Normalmente, esqueço o começo da criação, é muito engraçado isso. Não me lembro. Tem um livro meu, “Problemas da Família Gorgonzola”, que surgiu quando eu estava num congresso como convidada. Eu estava no lugar errado, falando a coisa errada para o público errado. Eu tinha que ficar duas horas ali, era um negócio comprido. E comecei a desenhar, desenhar, desenhar, desenhar, aí saíram esses desenhos. Quando eu pensei em fazer um livro de matemática, falei: “Nossa! É aquele pessoal!”.
E aí acrescento o que a minha filha diz. É como se tivesse numa piscina com umas bolhas de história lá embaixo, aí você acessa essas bolhas e surgem bolhinhas, bolhinhas, bolhinhas. Depois tudo se junta, como uma bolha de mercúrio. Magicamente a história está toda conectada. Então é preciso tomar muito cuidado para não fazer uma criação racional. Eu, por exemplo, tenho habilidade pra inventar uma história racional, mas ela não vai ficar boa. Ela não vai chegar ao meu leitor se não for criada de uma maneira delicada, como se eu tivesse pescando um pedacinho aqui um pedacinho lá, depois eu junto tudo.

GR – No livro A Gramática da Fantasia, de Gianni Rodari, o autor italiano indica alguns caminhos para a criação? O que pensa sobre isso?
EF – Faz muito tempo que li esse livro. Ele aponta alguns caminhos de criação. A criação tem um pouco a ver com essa mistura de coisas que aparentemente não têm nada a ver, isso a estimula, você faz associações de coisas que nunca foram associadas, então você cria uma terceira. Acho que pode ser um caminho. É um exercício que aumenta a flexibilidade criativa da pessoa, para que ela tenha mais recursos criativos, que não pense em uma só trilhazinha. Mas eu acho que isso não faz da pessoa um criador. São exercícios. Tem uma parte da criação que a gente pode aprender. O seu cérebro se acostuma a criar histórias. É um caminho muito misterioso que a gente faz na cabeça. Mas existe aquele impulso primordial que eu falei, e é a partir do impulso primordial que você faz esses caminhos misteriosos. O cérebro da gente é meio preguiçoso, ele faz sempre os mesmos caminhos, vai desenvolvendo aquela picadinha, que vira uma estrada iluminada. Então, no processo de criação, é importante sair dessa estrada iluminada e pegar picadas outra vez, pegar o facão e fazer estradinhas novamente.

GR – Você foi professora de artes. De acordo com sua experiência, como é o processo criativo das crianças?
EF – Fui professora de artes no ateliê do Museu Lasar Segall. A criança é naturalmente criativa, pois ela não tem essas estradas iluminadas abertas que o cérebro faz, aquele caminho de sempre. A criança tem uma criatividade natural porque não percorre um caminho já estabelecido. Quando ela começa por volta de 8 a 12 anos de idade a desenvolver a capacidade crítica, o racional e a capacidade de abstração também, passa a discernir o que é bom e o que é conveniente. Ao desenvolver o espírito crítico, passa a achar que “não está parecido com aquilo que está vendo”, fica insatisfeita com sua produção. Então ela começa a bloquear, isso falando especificamente de desenhar. E se ela bloqueia, entra num ciclo vicioso, porque a criança não produz, não se desenvolve, fica ainda mais crítica – e mais bloqueada. E são poucas as pessoas do ensino das artes que são preparadas para não deixar esse bloqueio acontecer, para a criança entender que toda criação é bem-vinda.

GR – E como isso se dá no universo do artista?
EF – O artista normalmente consegue passar essa fase de arrebentação, de vazio, de incômodo. É como se você tivesse prática de passar essa áreas de arrebentação e ir para alto mar. O artista tem essa maturidade. Ele sabe que vai dar um branco, que vai encrencar. Mas segue adiante, não desiste. Então, quando o próprio artista está criando, é importante ele ser receptivo em relação a todo tipo de bobagem que vem de dentro. Ela acolhe aquilo, mistura no caldeirão da história. Só depois é que você vai discernir o joio do trigo, mas nunca com um julgamento crítico do tipo isso vai para o inferno, isso vai para o céu. É sempre com uma capacidade de discernimento e não uma rejeição afetiva. A capacidade de discernimento é absolutamente necessária, mas numa fase posterior e com uma amorosidade, com uma receptividade.

GR – Na sua obra, muitas das histórias têm um olhar para o avesso das coisas e uma conversa direta com o nonsense. Pode falar um pouco disso?
EF – É, com o nonsense e com essa natureza que a gente esconde. É algo muito espontâneo, e nunca pensei em fazer isso racionalmente. Tem um pouco de uma busca do que existe por trás das aparências, essa busca do verdadeiro, o que tem por trás daquilo que a gente não mostra e se envergonha. É o clown. O que tem por trás dessa performance que a gente precisa ter na sociedade hoje é de uma perversidade inacreditável. Então tenho personagens que são tristes, os inadequados. Porque as habilidades muitas vezes são camufladas. E, se você olhar com amorosidade para as nossas inabilidades, elas podem ser muito bem acolhidas.

GR – Em livros mais antigos, como os da Bruxinha, há passagens de chutes na canela, uma violência física que parece não ser mais permitida hoje, não?
EF – Ninguém pode fazer mais nada hoje. Estamos numa camisa de força. Isso restringe a criação. Se você vai escrever uma história sobre uma criança analfabeta, sobre uma criança que roubou, sobre uma criança agressiva, é complicado... Muitas vezes essas questões entram de uma forma exemplar na história, dando um exemplo, o que não é nada legal. E o lado B do ser humano é a matéria-prima da literatura. Existe uma patrulha ideológica hoje. O universo da literatura infantil é um cercadinho. É complicado. Mas eu escrevo de uma forma simbólica e por isso é mais simples de lidar.

GR – Em livros como Lolo Barnabé você faz uma crítica ferrenha, e de um jeito sutil, sobre a sociedade de consumo.
EF – Vou pelo caminho simbólico, não lido com isso dentro da realidade. É como sei falar das coisas, como sei fazer as coisas. O caminho da realidade é mais duro pra mim, aí ficaria na obrigação de defender uma tese e poderia cair em generalizações. E aí você percebe que está sendo ingênuo ou está dizendo uma inverdade. Quando você fala simbolicamente, pode até particularizar aquela realidade. Não tem a pretensão de explicar o mundo. Gozado, a história desse livro começou assim: eu estava pensando se colocava ou não carpete na minha casa. Aí me lembrei que teria que também comprar um aspirador de pó, passar o aspirador na casa. Fiquei calculando o trabalho danado que daria: teria que contratar uma empregada e isso foi desencadeando um monte de coisas... Desisti do carpete, fiquei com  a história [risos].




Fonte: http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=222
https://www.youtube.com/watch?v=zjyI5bc6Pn4

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